terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Havia um chaveiro em formato de coração.



O avião cruzou o céu em brancas nuvens sem lhe dizer nada, sem sentir nada, sem derramar
uma única lágrima, sem se importar com o peso daquilo que consigo levara embora. Mas em boa
hora não lhe parecia ser a palavra mais adequada. E ela ficou ali, imperecível, olhando para tudo
aquilo que algum dia chamara amor e que agora parecia-lhe mais um ínfimo ponto azul no
horizonte - daqueles que sutilmente já não existe mais e deixa agente se perguntando até quando
realmente esteve ali -, até de-sa-pa-re-cer. Aqueles olhos que sempre se mostraram tão profundos e seguros de si agora eram outros, dissolveram-se em água com sal e só assim puderam enxergar novamente.
Então ela pode perceber que era dia embora fosse noite dentro dela e ventasse no espaço
vazio entre os dois pulmões. E que havia uma vida inteira exatamente como ela havia deixado fora daquele aeroporto, e que seguia o seu fluxo orgânico. Ao cruzar o saguão parou em frente a porta outrora fechada e que se abriu como se gentilmente a expulsasse daquele lugar. Ao passar pela porta parecia emergir do fundo gelado de um oceano. Um passo a frente e pode sentir o calor do mundo.
Sentia seus pés tocando cada vez mais superficialmente o chão ao passo que se tornara tão leve que quase flutuara. Um pedaço dela havia embarcado junto a ele naquele vôo sem escalas para o Trângulo das Bermudas.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A maré.



Monstros do controle serão sempre monstros. Apresentam conformação anômala e tão logo,
tornam-se um indivíduo, ser ou qualquer outra conotação que causa pasmo em outrem. Exercem
um domínio físico e psíquico de si mesmo e esperam que nada se desvie do ritmo preestabelecido.
Odeiam surpresas porque são alheias a sua vontade, tão donas de si como um cavalo selvagem e não
há rédeas para puxá-las.
Ela era um monstro do controle. Diziam que controlava tudo o que podia, e o que não podia
também. Gostava da sensação que se tem por alguns instantes de mandar no destino. Mas uma coisa
ela não sabia, há coisas que não se pode controlar, sra. monstra.
A verdade é que no fundo ela sabia que existem harmonias que não se deve mexer, que
estragam a música. Existe hora pra tudo, por mais distante que possa parecer. Ele mesmo a havia
ensinado da maneira mais sutil - e no entanto mais difícil - que ela já se permitira sentir.
Foi com passos lentos sob aquele pôr do sol de primavera que ele desenhou na areia com
seus pés descalços - e coração aos tropeços - uma forma meio turva, meio descompassada e que ela
jamais esquecera: existe a hora dos violinos e existe a hora dos tambores.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Crônica urbana.



Aquele homem sentado na calçada não era pedindo moedas não se encerrava em si. Para ela, era
muito mais do que um homem sentado numa calçada de uma metrópole ao fim de mais uma tarde de terça-feira. Não era apenas um homem que estava ali, era um homem só. Um homem só pedindo esmolas na entrada de um prédio. E em um prédio naturalmente existem pessoas que entram, saem e sobretudo moram ou vão fazer visitas... Ninguém visitava aquele homem.
Ficou observando-o. Quantas histórias não tivera pra contar? Por quantos caminhos não teria
trilhado? Havia tido amores, horrores, temores, dissabores? Quem lhe faria um elogio ou uma
gentileza? Quem o faria companhia? Quem perguntaria sobre o seu dia? Alguém lhe desejaria um
bom dia ou uma boa noite? Quem lhe estenderia a mão? Quem lhe daria um abraço ou um afago?
Quem o desejaria um feliz aniversário? Quem o faria sorrir? Quem secaria suas lágrimas quando a tristeza chegar? E ela algum dia iria embora? Quem o secaria da chuva ou lhe aqueceria num dia frio? Onde ele dormiria hoje? Quem colocaria o cobertor sobre os seus pés? E no meio da
noite, quem lhe espantaria o medo? Quem lhe contaria histórias sobre mundos distantes com
castelos e princesas? Quem lhe daria o direito de sonhar?
Seus olhos ficaram úmidos e caminharam em direção aquele homem de cabelos e barbas grandes, roupa e sacolas imundas à tiracolo. Coração aos tropeços. Estendeu a mão como num gesto mecânico e saiu antes que uma gota fujona percorresse pelo rosto, antes mesmo de ouvir o trincar das moedas na lata vazia... Não tinha o direito, não na frente daquele homem cujos olhos tão doces e tão cansados vissem, rissem com os poucos dentes que lhe restara. Entrou depressa num ônibus antes que fosse tarde para o jantar.
A cena chamou atenção do homem amarelo do outro lado da calçada que observava tudo atento.
Para ele era apenas uma garota dando esmolas a mais um pobre diabo como tantos por aí e
isso lhe deixou emocionado por alguns instantes até distrair-se com a crônica urbana da próxima
esquina. Afinal, acontece o tempo inteiro. Alguém aí se importa?

terça-feira, 6 de julho de 2010

As meninas


Saíra de casa com tanta pressa que nem tivera tempo de comprimentar todas as pessoas conhecidas com quem cruzara pelo caminho. Esava atrasada naquele dia. Mal percebera que lindo dia de sol fazia naquele início de tarde. E que agora, também mal podia vê-lo devido a todas as limitações que existem em se ver o mundo por aquela janelinha empoeirada do metrô.
Já acomodada, pudera enfim prceber as pessoas que estavam no vagão aquele dia e escolher as quais iria se ater durante grande parte daqueles 30 minutos de casa até a faculdade. Se tinha alguma coisa que lhe encantava mais que os mistérios do mundo, era gente. Gostava de observá-las. Todas elas. Eram tantas e tão diferentes... E imaginar suas vidas fora daquele vagão de trem lhe despertava bastante curiosidade.
Entre tantos homens e mulheres que observava, desviou o olhar para as pessoas que entravam e saiam na estação seguinte. Então pode perceber que à apenas algumas cadeiras, antes vazias, assentavem-se lentamente três meninas. Trajavam roupas muito simples e muito pequenas, parecendo ser aguns números menor que as próprias meninas. Com um semblante infantil e chinelos nos dedos uma delas, inquietante quando sentada, permaneceu de pé ao longo do caminho. Reparou que ninguém as acompanhava. Não soube bem o porquê, mas aquela cena lhe havia chamado mais atenção do que todas as outras para as quais tinha agora a vista turva.
Para onde vão aquelas meninas? Se perguntava. Eram tão poucas e tão pequenas... E conversavam distraídamente sobre alguma bobagem do dia anterior ou qualquer coisa do imaginário infantil. Ela observou as meninas até descerem na próxima estação e desaparecerem com seus passos curtos na paisagem ensolarada.
Para onde vão aquelas meninas? Os olhos dela não souberam responder. Afinal eles tampouco conhecem ainda todos os caminhos do mundo.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Vermelho.


No rotineiro caminho de casa observava, quase que instintivamente, o alienante trânsito de pedestres pela calçada daquela manhã castanha anunciando tempestade. De novo, o dia castanho se despede. E de novo, suas indigestas lembranças voltam a cumprimentá-la.
Nesses dias o seu coração tornava-se leve e poroso. Parecia dilatar-se tanto que quase a sufocava. E como uma esponja, a medida que o negro céu ia chorando, o peito dela ia inundando como se - não bastando sangue - quisesse exaurir para si também todas as lágrimas do mundo.
Seguia pelas ruas, embora ainda molhadas, estavam fantasmagoricamente cheias. Via pessoas vazias. Pensou que talvez fossem espíritos, sem luz, sem sombra. Na dúvida, as observava enquanto as castanhas nuvens se disipavam pelo céu matinal.
Alguém que faça do meu outono uma primavera. Cantarolava distraídamente a menina de meias roxas em meio a algumas palavras trocadas - entre passos e risos - com a garota ao lado.
Virou a cabeça depressa para o lado oposto, não se sabe se querendo desviar a atenção de algum dos sentidos ou dos sentimentos que logo dispersaram-se - junto com a luz do sol que despontava ainda tímido - em gotículas de água suspensas no ar. Do outro lado da rua, pode notar uma árvore desfolhada. Seu tronco retorcido - em meio a algumas folhas secas ainda não varidas ao chão - foi tudo o que restou dela.
Alguém que faça do meu outono uma primavera, lembrava. Havia desejado muito isso. Mas tivera sido antes de quando tentar entendê-lo ainda parecia fazer algum sentido.
Enquanto isso o fluxo segue na quase tarde da metrópole. No rotineiro caminho de casa, ela dobrou a esquina à esquerda. Havia decidido comprar maçãs.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Sabão.


As cenas do que ocorrera pela manhã ainda passeavam lentamente pela sua cabeça. Tão lentas quanto as nuvens brancas como algodão doce, e que iam formando desenhos no céu azul celeste, e que agora ela observava pela janela.
Lembrando minunciosamente do ocorrido, pôde enfim ater-se a detalhes que há algumas horas passaram despercebidos. Como quanto definiram-a com um adjetivo que ela jamais ouvira. Nem tampouco conhecia o seu significado. Entretanto, ela que sabia tudo, só não sabia voar.
Procurou então por um antigo livreto vermelho - já empoeirado na prateleira - ao qual costumasse recorrer quando não se tem o domínio léxico necessário para compreender uma ofensa, ou tão logo vestir uma carapuça.
Por certo que já haviam adjetivado-a antes de inúmeras maneiras. Umas simpáticas, outras nem tanto. Algumas até dificéis de proferir, daquelas cuja tamanha complexidade despertam por si só certa execração.
Anacrônica. Escalafobética. Efêmera. Libertina. Subjacente. Pueril... Vez em quando até se perguntava se não seria mesmo uma prosopopéia, que dava ímpeto a uma moçinha feita daquela argila molenga e gordurosa, que não serve nem mesmo pra virar tigela. Mas covarde?
Folheou vagorosamente as páginas amareladas - enquanto sua mente vagava em meio a devaneios e amenidades - como se quisesse adiar a descoberta numa mistureba descomedida de ansiedade e desespero. Finalmente, encontrara - entre um substantivo masculino e um feminino - o significado do que há pouco procurava:

Covarde.: adj. 1. Medroso; sem coragem. 2. Poltrão. 3. Desleal; traiçoeiro.

A noite já havia caído quando caíra em si. Caída em frente a um reflexo inanimado - por trás de um espelho estilhaçado - que a olhou mas não sorriu. E ao qual ela berrou quebrando o silêncio:

- E você, também é demasiado covarde para ser intenso?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Verbo transitivo.






Habitava um estado de leve procrastinação por conta de uma certa feita, e que há muito não fazia.
Não sabia responder o porquê quando a indagavam. Certamente pela sua má dicção e seu coloquialismo ao falar tentando esconder sua notável insegurança. Sobretudo quando tinha dúvidas... E eram tantas!
Sempre fazia questão de aparentar um interessante ar de superioridade, mesmo que no seu íntimo não acreditasse muito nisso. Mas fingia tão bem...
Era isso que fazia, porque era tudo o que sabia fazer. Embora agora pra ela isso nem fosse tão relevante assim. De tudo, só restava agora uma lasanha requentada - que acabara de tirar do microondas e pôr sobre a mesa - e que agora esfriava, enquanto ela assitia o jornal e respondia "boa noite" ao apresentador.
Com as luzes do apartamento apagadas, as sombras brincavam na parede durante o sôfrego trajeto do garvo à boca. O resto eram sobras...

Outras Coisas Venenosas...

Outras Coisas Venenosas...